O que dizem especialistas sobre os mecanismos do cérebro responsáveis por gravar recordações
Por que lembramos em detalhe de algo que aconteceu há muitos anos, mas não do nosso almoço da última segunda-feira? Será que as memórias ficam guardadas em algum lugar específico da nossa cabeça? Como é que às vezes conseguimos buscar facilmente uma informação, mas em outras ela fica inacessível, apesar de sentirmos que a temos na ponta da língua? O que faz gravarmos umas coisas e não outras? Quem decide, da vastidão de dados, imagens e sensações que nos bombardeiam, os pouquíssimos que vamos manter e os infindáveis que serão destinados ao esquecimento? E será que o que recordamos realmente aconteceu, e do jeito como lembramos? Quantas memórias temos? Elas são imutáveis? Continuaríamos a ser nós mesmos sem elas?
Poderíamos continuar multiplicando as perguntas indefinidamente, porque a memória é um daqueles fenômenos essenciais à nossa vida, mas ao mesmo tempo continua parecendo algo mágico e misterioso. Se o leitor consegue compreender este texto, é porque memorizou letras, palavras, grafias e normas gramaticais. É também porque, neste exato momento, seu cérebro mantém presentes, de alguma forma, as frases anteriores, de modo que a sentença atual faça sentido dentro de um certo contexto. Usamos a memória quando manejamos um automóvel, reconhecemos um cheiro ou uma melodia no rádio, pressionamos automaticamente determinada letra no teclado do computador, percorrermos um trajeto pelas ruas da cidade, executamos um cálculo ou realizamos as atividades rotineiras da nossa profissão. Para cada mínimo ato, abrimos uma espécie de escaninho e acessamos uma informação que foi arquivada em nós. “Somos aquilo de que nos lembramos”, afirmou o pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004).
Nos últimos anos, a compreensão dos mecanismos de funcionamento desse sistema avançaram bastante. O professor Lucas de Oliveira Alvares, do Laboratório de Neurobiologia da Memória da UFRGS, cita como mais recente revolução na área uma técnica chamada optogenética, que permite marcar e mexer em neurônios que foram utilizados para aprender alguma coisa.
— Essa técnica fez o campo mudar de patamar, porque tornou possível registrar os neurônios que são o substrato físico da memória e, depois, manipulá-los, ativando-os ou desativando-os — afirma.
Outra linha de pesquisa em alta, segundo o pesquisador, diz respeito a memórias traumáticas. A perspectiva é de que pesquisas nessa área ajudem as vítimas de transtorno pós-traumático a lidar melhor com as lembranças difíceis.
— O que se vislumbra é alterar, senão o conteúdo da memória, ao menos a resposta emocional que aquela memória desencadeia. O que em geral acontece é conseguir bloquear a expressão fisiológica de medo da pessoa, fazer que o coração não bata tão rápido. Já ocorreram muitos trabalhos em humanos e aparentemente está funcionando — diz Alvares.
Essa ação é possível durante um dos mais fascinantes processos envolvidos na memória, a chamada reconsolidação. Para entender esse mecanismo, pode ser interessante fazer uma analogia com um arquivo de texto no computador. Depois de abri-lo para uma consulta, nós o salvamos de novo. Se alguma informação for acrescentada enquanto o arquivo estiver aberto, o texto salvo ficará diferente do que era originalmente.
Descobriu-se que isso também acontece com a memória. Quando evocamos uma lembrança, é como se abríssemos o arquivo da nossa mente onde ela estava registrada, para depois regravá-la, ou seja, reconsolidá-la. No momento da evocação, porém, a recordação fica em uma situação de instabilidade. Se alguma informação diferente se imiscuir, podemos salvar uma memória modificada, diferente da original.
— Cada vez que lembramos de algo, a lembrança pode tomar caminhos diferentes. Pode ser fortalecida, direcionada ao esquecimento ou alterada. É um momento de alta plasticidade e uma janela de oportunidade para direcionar — observa Alvares.
O perigo das memórias falsas
Apesar das possibilidades clínicas importantes para quem sofre de estresse pós-traumático e da utilidade para o dia a dia (por exemplo: quanto mais estudamos para uma prova, mais informações guardamos, graças à reconsolidação), esse processo também embute o perigo das memórias falsas. E se a testemunha chave de um crime der um depoimento baseado em uma lembrança que não corresponde exatamente ao que ela viu, enviando um inocente para o cárcere? Nos Estados Unidos, já houve casos até de pessoas que confessaram um assassinato e que depois foram inocentadas graças ao DNA. Libertadas, continuavam a lembrar de ter cometido o crime.
Uma situação assim pode ser menos exótica do que se pensa. A pesquisadora Cristiane Furini, do Centro de Memória do Instituto do Cérebro da PUCRS, acredita que em algum momento da vida todos nós armazenaremos memórias falsas. Um exemplo clássico, que ela cita, é de situações que guardamos como recordações de infância, mas que na verdade têm na origem a contemplação de alguma foto antiga e de um relato sobre ela feito por uma familiar.
— Os estudos têm demonstrado que a forma como somos indagados sobre uma informação pode fazer a gente criar falsas memórias. Se eu perguntar a alguém que testemunhou um acidente se houve vidros partidos e carros destruídos, ela vai dizer: “Ah, sim. Foi terrível”. Mas se fizer as perguntas com outra entonação, as pessoas vão dizer: “Um carro encostou no outro, mas não foi muito sério”. No momento da evocação, está presente uma informação que pode entrar como memória. A pessoa se convence de que está lembrando, mas não foi bem aquilo que aconteceu — afirma Cristiane.
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/vida/noticia/2019/03/o-labirinto-da-memoria-por-que-lembramos-e-por-que-esquecemos-cjsyxulbv017701ujg8dg2akj.html